CANTO I
Há coisas cujo nome não pode ser mencionado
Acções que precedem a linguagem, os nomes, os sentidos
Desejos que resistem a ser registados
Momentos instintivos, irracionais, humanos
Há coisas que acontecem, que existem fora das construções culturais
Há coisas cujo nome não deve ser mencionado
Práticas enunciadas por uma linguagem que as rejeita
Desejos inscritos com um sentido abominável, conquistados por uma lógica ortodoxa
Momentos colonizados como o território que os compreende
Coisas feitas história e contadas contra certas tradições;
farsa disfarçada de verdade
Há situações que acontecem e são erradicadas com violência moral,
julgadas com fervorosa devoção religiosa
Essas coisas chamadas contra-natura são os pecados nefandos
CANTO II
A paisagem não confessa o que presenciou;
as imagens estão fora do tempo e velam as acções que ali tiveram lugar.
Se observarmos atentamente a corrente do rio,
a folhagem das árvores ou o peso das rochas
poderíamos revelar a sua história?
Não.
Precisamos de instrumentos,
de documentação, de signos.
Foram encontrados ao longo do continente americano,
desde a península de Yucatan ao sul dos Andes,
artefactos orgulhosos e reveladores;
potes de barro e de cerâmica;
jóias forjadas a ouro e esculturas de pedra que representam actos homoeróticos,
actos de sodomia,
de sexo homossexual.
Hoje viajo ao longo de um rio com um nome de um Dom espanhol à procura de indícios dessa sexualidade celebrada,
indícios do momento que precedeu à sua demonização.
Este é um rio conquistado e um rio cúmplice;
as suas límpidas águas revelam leitos cicatrizados
onde etnias pré-hispânicas viram os seus corpos flutuando,
escravizados,
mortos,
onde as suas tradições foram afogadas.
CANTO III
A conquista é uma história de silêncios
Subordina o corpo
Reduz o desejo a cinzas
CANTO IV
A expressão do homoerótico foi também assinalada por cronistas,
europeus colonos e missionários evangelizadores saturados de fé e da moralidade de um Deus ocidental.
Nas suas crónicas referem-se aos pecados nefandos como uma anormalidade;
uma perversão xamânica e tribal oposta aos fundamentos de género e sexuais da "civilização".
Com base na passagem bíblica de pecados conta a natureza, no Leviticus 18,
"Não te deitarás com um homem como se fosse uma mulher; tal coisa é abominação",
o processo de domesticação evangélica era,
no seu ponto de vista, uma "salvação transcendente".
Outras crónicas narram que os conquistadores deram aos nativos pecadores um pouco do seu próprio "gosto", sodomizando-os para os castrar,
violando-os para lhes cobrar a sua falta de culpa cristã,
e matá-los para erradicar a propagação dos seus crimes hediondos.
Para os colonos a sodomia era mais abominável que a zoofilia
e que o prazer solitário da masturbação;
era a maior transgressão da moralidade,
que justificava serem erradicados
de qualquer forma,
não importava quão violentamente.
CANTO V
Apesar da sua intenção destrutiva, permanecemos aqui
Corpos, sangue, rituais, tradições, lendas, sacrifícios
O templo do cosmos
Terra sagrada
CANTO VI
Neste território a conquista instaurou a noção de história e as suas pretensões de objectividade.
Os seus relatos e crónicas baseiam-se em categorias importadas;
que são responsáveis pelo nosso conhecimento do corpo e da estigmatização do sexo.
O ânus deve a este momento a sua transformação em órgão de imoralidade,
num templo da vulnerabilidade masculina
e no território da sodomia.
CANTO VII
O seu vício era a nossa santidade
O seu pesadelo o nosso sonho
Os seus monstros os nossos ídolos
As suas perversões as nossas crenças
A sua história o nosso calvário
A nossa terra o seu tesouro
CANTO VIII
Procuro por detrás destas rochas molhadas,
através destas árvores silenciosas
e nestas águas correntes,
sinais do que era antes de ser nomeado,
indícios do pré-denominado.
Procuro marcas de um momento desconhecido e indocumentado.
Procuro uma imagem do desejo antes de ser criado,
manipulado,
alterado,
julgado.
Procuro outra história;
uma sem violência e opressão.
Procuro construir uma mentira na qual me possa ver reflectido.
Escapo do conhecimento,
procuro-me num estado inexistente.
CANTO IX
A minha voz mediada pela tua
Palavras impostas sobre as minhas acções
Tradições designadas como comportamentos
Os teus interesses reflectidos no meu corpo
Sou uma ficção inventada por ti
Olha-me nos olhos, o que vês?
O caudal do rio?