Wild Urbanity
21.Jan.2023 | 04.Mar.2023
Press
Press Release
<p>PROJECT | SANDRA BAÍA</p>
<p>WILD URBANITY</p>
<p>21.01 | 16h-19h</p>
<p>A Galeria Filomena Soares e a artista Sandra Baía têm o prazer de convidar para a inauguração da exposição individual do Projecto da artista WILD URBANITY, com curadoria de David Barro, no dia 21 de Janeiro, entre as 16h e as 19h.</p>
<p>Até 04.03.2023</p>
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<p>Wild Urbanity</p>
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<p>Se há uma coisa que nos seduz nas obras de Sandra Baía, é como em muitas ocasiões consegue apelar a todos os sentidos ao mesmo tempo. O seu domínio da escala, o seu sentido de orientação e equilíbrio, a sua relação com o contexto que acolhe a obra, a procura do deslocamento do espectador e a dimensão do tempo, a cuidadosa iluminação, as suas deceções visuais a partir do plástico, o envolvimento do som ou a eloquência dos seus silêncios e como é capaz de fundir a perceção com a memória e a imaginação, permitem que cada uma das suas exposições seja uma experiência atmosférica que necessita de pouco mais indução intelectual do que a nossa própria sensibilidade emocional. Sandra Baía conseguiu nos últimos anos proporcionar com as suas obras o que Constantin Brancusi associou ao impacto da vida: a sensação de respirar. Por outras palavras, consegue imaginar situações e espaços, objetos ou pinturas, capazes de evocar uma realidade imaginativa semelhante a uma experiência real.</p>
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<p>Na exposição <em>Wild Urbanity</em>, na Galeria Filomena Soares, a artista introduz-nos a uma ficção arqueológica e urbanística, ligando-nos à arquitetura do espaço expositivo, mas também à arquitetura e à paisagem urbana em geral, com a sua memória, quando se torna um enigma do que foi e assume uma condição especular, entre o que é revelado e o que está escondido. Esta ideia do vestígio, de resto performativo, tão presente ao longo da carreira da artista, está sempre associada ao desconhecido e aparentemente insignificante, como no caso dos seus objetos reciclados, apreendendo o seu passado anónimo, aquilo a que Boltanski denominava de “pequena história”, referindo-se ao passado que permanece escondido, às ruínas ou descobertas do que habita em segundo plano. As obras de Sandra Baía assumem estas fricções ou marcas do passado como parte do processo; a realidade esbate-se quando a outra realidade – a pictórica – emerge e se consolida, embora nunca desapareça, apenas se transforma.</p>
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<p>Na primeira sala, a artista apresenta <em>Fragments on a hall</em>, uma obra intensa e monumental que ao mesmo tempo consegue projetar serenidade e intimidade absolutas. Sandra Baía é inspirada pelos grandes contentores que dominam os portos das grandes cidades até se tornarem pequenas cidades em si, mas também pelos edifícios que são demolidos e dos quais só vemos as suas paredes vazias, quase sempre com cores diferentes que tanto inscrevem como escondem histórias passadas com as quais apenas nos é permitido especular. Ambos os casos foram utilizados como motivos por outros artistas, mas a singularidade de Sandra Baía reside na sua forma de trabalhar com o material e na forma como consegue uma ambiguidade de significado entre o que permanece escondido e o que é revelado. O espaço desenrola-se como uma carta, sempre situada em território incerto, entre o destinatário e o remetente, neste caso, entre o artista e o espectador. Lacan disse no Seminário de A carta robada que o que está escondido nunca é outra coisa senão o que falta no seu lugar, e de facto, face ao que está escondido projetamos uma forma diferente de intensidade, dando força a esse estado de parênteses. Sandra Baía mergulha neste jogo e move uma das obras que compõem a obra, num jogo infinito de ocultação e desobstrução, encorajando a nossa deslocação física a acompanhar a nossa deslocação mental, situando mais uma vez a sua obra na intersecção entre pintura, escultura e arquitetura, espremendo as possibilidades plásticas do local para se situar sempre perto do quotidiano.</p>
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<p>É desta forma que a artista sensibiliza o espectador para a arquitetura como um ponto de partida. Porque a sua é uma escultura espacial, capaz de assumir a verticalidade das paredes ou a horizontalidade do chão como parte do seu trabalho, como podemos ver em <em>Hall-in-one</em> ou em <em>Interstellar collision</em>, duas obras em exposição que funcionam numa espécie de abismo horizontal. Para o espectador não há lugar para certezas. Se em muitas ocasiões o seu trabalho foi transmissível, nesta ocasião esta transitividade baseia-se em reflexos e sons, que interferem e expandem o espaço. O interessante é que tudo se passa num campo infinitamente maior do que aquele delimitado pela superfície da obra, que já é, por si só, muito grande. Mas o jogo proposto é muito mais amplo, algo como uma ressonância da experiência vivida, daí a importância do som, que nos envolve e transporta para um lugar sem lugar, como as suas superfícies espelhadas.</p>
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<p>Enquanto com <em>Fragments on a hall</em> Sandra Baía consegue sublinhar uma espécie de deslocamento interior de uma forma quase impercetível, suavizando a superfície pintada, transportando-nos para um mundo em transe de se desvanecer e desmoronar. Os campos cromáticos geram um efeito de infinito e os vazios e elipses, os silêncios, como o da peça em falta, assumem uma eloquência atmosférica.</p>
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<p>Borges afirmava com especial lucidez: todo o lugar é arqueológico. Sandra Baía sabe disto e trabalha estes sedimentos, para que o espectador complete as elipses que nascem entre os fragmentos daqueles que nos precederam ao habitarem estas imagens ou objetos. A textura da cidade é aqui conseguida com uma série de pinturas feitas com aço inoxidável e tinta electro magnética com um efeito de flocagem.</p>
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<p>Para aqueles que ainda não se familiarizaram com o trabalho de Sandra Baía, vale a pena notar que as suas obras obedecem sempre a um interesse em construir a sua obra a partir do contexto que a acolhe. Por outras palavras, ela quase sempre acaba por converter o contexto – o espaço de exposição – em conteúdo, uma vez que as suas obras acabam por condicionar o próprio espaço de exposição e as suas condições iniciais. Esta é uma premissa que precede o trabalho. Noutros casos, como nos seus espelhos ou balões insufláveis, é o espaço que reverbera e a relação entre as obras e o espaço que as acolhe torna-se indissolúvel. Nestes, a intenção não é propor uma reflexão ao espectador, mas antes, modificar a sua perceção, estabelecer fissuras, deformações como as pretendidas por Francis Bacon, que, ao colocar vidro nas suas pinturas, suspende o tempo na experiência do incerto.</p>
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<p>Em outras ocasiões sublinhei a capacidade de Sandra Baía trabalhar com texturas visuais, as tensões entre linhas. Porque no seu trabalho há sempre uma certa tensão intersticial, típica dos olhares que procuram a margem, os limites. É por isso que a intenção das suas superfícies espelhadas seja a de interromper a visão espacial permitindo a contração e expansão do próprio espaço. É como se o nosso olhar estivesse exposto a um abismo horizontal. O nosso olhar perde-se num espaço que se estica e deforma, e quando os espelhos ou as superfícies de alumínio são pintados, o mistério é escondido.</p>
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<p>Gosto de insistir que Sandra Baía é uma daquelas artistas capazes de se mover fluidamente entre o espaço ilusionista da pintura e a presença física da escultura, entre o medido e concentrado da pequena escala e o expandido e insondável da escala monumental. <em>Wild Urbanity</em> é um bom exemplo disso. A equação não está ao alcance de muitos criadores, porque a sua obra está situada nos cruzamentos, onde a tensão permanece escondida. Sandra Baía cria paisagens dentro de paisagens. É assim que ela perverte a nossa visão, como desestabiliza a nossa memória para gerar fissuras na perceção ao colocar-nos num espaço capaz de gerar as suas próprias ressonâncias, ou as suas próprias colisões. Aqui, como Merleau-Ponty assinala em muitos casos, não se trata de ver a obra de arte, mas de conseguir ver o mundo através da obra.</p>
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<p>David Barro</p>
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<p>Densidade e utopia</p>
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<p>Comecemos pelos títulos das obras: Wild Urbanity, Fragments on a hall, Hall-in-one, Mutual excitement e Interstellar collision. Em todos pressentimos uma dualidade, como uma transição entre uma ideia de construção, e assim material, e uma realidade sensível, permeável e, por vezes, sensual. A forma como a artista nomeia e identifica as suas obras escultóricas concorre para esse dualismo, ou para uma dialéctica entre o objecto trabalhado e o contexto que este vai activar, o qual, desde logo, transforma o espaço do observador numa arena de confronto e de interacção. Mas é também provável que esta característica, muito significativa no trabalho da artista, seja por vezes menos visível num olhar imediato à legenda da peça, quando em confronto com a escala e a diversidade do vocabulário dos materiais que Sandra Baía desenvolve nas suas obras. Um exemplo particularmente revelador do tratamento escultórico dessa ferramenta semântica que confere significado à nossa relação com o universo dos objectos materiais e correlativamente com uma ideia de ambiência que se expande sobre a natureza como a conhecemos e sob a transformação à qual é sujeita encontra-se numa obra de 2018, intitulada “Entalada”. Trata-se de uma esfera reflectora de apreciável dimensão, superior à escala do corpo da artista, que foi exposta em contextos diversos: primeiro em Lisboa entre dois edifícios, literalmente entalada, no Projecto Travessa da Ermida, e posteriormente sob outras designações, em ambientes urbanos ou de património histórico, como o Convento do Carmo. Mas também no interior de um bosque, como mais recentemente na exposição Finger Print, realizada na Fundación Manolo Paz, em Espanha.</p>
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<p>Para a presente exposição, Sandra Baía reflectiu sobre o espaço da galeria, enquanto processo de composição da exposição, pensando a montagem numa relação entre os limites do corpo e a obra de arte que reconfigura a arquitectura. Sob este aspecto, propõe-nos uma experiência sensorial que não se furta a resgatar ao imaginário colectivo uma dimensão ficcional e de matriz cinematográfica. A exposição sublinha uma ambiência que se desenvolve em dois actos, radicada numa construção de elementos que se propõem como órgãos de um corpo urbano, inventado, fragmentado, e constituído por matérias industriais, que declinam formas e volumes que parecem pertencer aos bastidores de uma precária memória apocalíptica.</p>
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<p>Assim, quando lemos o título de uma das obras, Fragments on a hall, é quase impossível não o relacionarmos com o título da exposição: Wild Urbanity, que numa tradução livre e literal quer dizer qualquer coisa como “Urbanidade Selvagem”. Esta obra é protagonista de um dos dois momentos ou actos que constroem a exposição. E de facto é de uma construção que se trata, mas no sentido metafórico, porque toda e qualquer referência ao espaço urbano construído é apenas provável. Esta probabilidade encontra-se também presente na dimensão que estas esculturas vão buscar às megalópoles e às suas edificações possuídas de uma humanidade incerta.</p>
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<p>A obra é constituída em módulos, que se encaixam através de um elemento que intersecta o módulo que lhe é contíguo, como um elo de ligação replicável até ao infinito. Ou seja, esta obra de dimensão magnífica é, afinal, e em si mesma, um fragmento de uma possível realidade maior, ficcional e relativa ao universo das imagens que trespassam a literatura e o cinema, na visionária e ainda utópica esteira de Blade Runner e de outras sagas possuídas pelo esplendor trágico das construções que tudo agregam, associadas ao despojamento da natureza, da qual vai restando apenas uma memória. Sobre esta obra, e sobre estes módulos, que fazem pensar na unidade e na globalidade que a sua forma total enuncia, podem surgir algumas questões: serão as paredes que restam? Serão pinturas que associamos a ruínas de divisões industriais ou domésticas? E, se se trata de uma ruína, como pode esse resto ser tão belo cromaticamente, tão sensual ao toque e à sensação de desejo, na matéria da sua pintura? E de que matéria é feita essa pintura?</p>
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<p>Uma outra questão parece ainda pertinente: o título desta obra aponta para uma ideia de percurso, como fragmentos numa parede ou num corredor (?). Esse percurso exige por um lado que o observador percorra a obra na sua dimensão mais longa, e por outro que se distancie para que esta seja apreensível na sua totalidade. Contudo, a parede da galeria devolve-nos uma outra interrogação no espaço vazio que parece fazer um intervalo na composição. Esse elemento que aparentemente interrompe a sua forma regular, ocupa um outro lugar, numa sala da galeria que parece escapar ao espaço expositivo, provocando uma leitura próxima de uma geografia urbana, de elementos familiares que se vão disseminando através do espaço.</p>
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<p>Na segunda sala da galeria, a artista redesenha todo o espaço com uma escultura suspensa que comprime a sala em todas as suas dimensões. A questão sobre a ideia de ambiência, anteriormente referida, é aqui uma presença física, negra e sonora, como uma outra arquitectura que irrompe na arquitectura pré-existente. Aparentemente inerte, parece também mover-se como uma entidade que respira na sonoridade que nos envolve, e tende a fazer jus ao seu título: Interstellar collision. É uma obra que se constitui na contradição da tensão que provoca no nosso corpo vs. o deleite do olhar ao percorrer a sua superfície, sob a perspectiva do observador, que lhe atribui uma forma elíptica, e talvez cósmica, quando na realidade se trata de uma espécie de calota, concebida num círculo perfeito. As referências à cinematografia apocalíptica e ficcional parecem agora mais evidentes, acentuando a dimensão poética no trabalho de Sandra Baía.</p>
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<p>Contudo, a sua obra tem-se posicionado, do meu ponto de vista, sobre temas que interrogam a nossa relação, enquanto corpos sensíveis, com o espaço onde transitamos. É uma obra que dialoga com a modernidade, auscultando os limites da escultura e da arquitectura numa estreita relação com a gravidade, as colunas suspensas e as superfícies reflectoras, como a obra Hall-in-one, que, assente sobre o chão, parece de facto flutuar porque espelha de modo disforme o contexto que a envolve, e inevitavelmente a tensão com a verticalidade do corpo humano, frente à parede. E mesmo quando as obras de grande dimensão são instaladas sobre o chão, a sua base é o mesmo plano que qualquer um de nós pisa e percorre, não um pedestal ou plinto. Neste sentido, a sua obra inscreve-se numa linhagem de artistas que trabalham o espaço e o trânsito do corpo através da escultura e da sua interacção com este, algo que Richard Serra refere numa conversa com Hal Foster<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> sobre uma das mais importantes rupturas na história da escultura e da arte do século XX, que ocorre com o abandono dessa ferramenta que serve a memória monumental para reactivar o espaço do espectador nas diversas modalidades do seu comportamento no mesmo nível. E é isso que acontece na experiência que esta exposição proporciona, entre a intensidade háptica da cor, sensual e vertiginosa, e a transformação do espaço em presença da escultura, independentemente ou não (?) da sua densidade, por vezes, wild.</p>
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<p>João Silvério</p>
<p style="text-align: right">*Revisão de José Gabriel Flores</p>
<p style="text-align: right">O presente ensaio é escrito ao abrigo do antigo acordo ortográfico.</p>
<p style="text-align: right"><a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Hal Foster, <em>The Art-Architecture Complex</em>, ed. Verso, Londres, 2011, pp. 142 -143.</p>
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<p style="text-align: left">© Images by João Neves<br />
© Sound by Bernardo Marques and Miguel Diogo</p>