Places of War
01.mar.2021 | 29.mai.2021
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Press Release
<p>O Elogio do Nada </p>
<p>Ao longo dos tempos, o confronto da humanidade com a realidade da guerra tem sido uma constante. A história da arte está repleta de criações artísticas que tem por referente a guerra e que evocam inúmeras experiências e perspectivas, sendo uma das mais recorrentes a questão estética e conceptual das ruínas.<br />
Se no renascimento as ruínas eram símbolo de espólio do conhecimento e no romantismo de alegoria de uma natureza em declínio, fruto da modernidade, na era contemporânea, tal como anteriormente no século XVIII, as ruínas são cada vez mais sinónimo de tragédias, de catástrofes naturais e políticas . 1 </p>
<p>No passado recente e no presente, as ruínas retratam o assolar de cidades e paisagens dominadas pela entropia, como que obliteradas geograficamente gerando “não lugares”, conceito definido por Marc Augé, o que nos remete para a sua reflexão: “O termo ‘espaço’ em si próprio é mais abstracto do que ‘lugar’, através de cujo emprego nos referimos pelo menos a um acontecimento (que teve lugar) a um mito (lieu-dit, lugar-dito-de) ou a uma história (haut lieu, lugar nobre)”. 2</p>
<p>Foram lugares de guerra e as ruínas que neles restaram, que se impuseram ao olhar de Daniel Nave e o induziram a este novo projecto artístico. Em Places of War, o ar;sta revalida o termo “lugar” por oposição à ideia de “não-lugar”, cenários de locais com história e memória, violentados por um belicismo impiedoso e alheio aos habitantes desses mesmos lugares. Nas suas palavras: “O atual cenário de guerra em vários lugares do mundo, com flashes diários sobre atentados e violações contra as vivências de diversas comunidades, constituíram o ponto de partida para este meu novo trabalho. As cidades transformaram-se em alvos de uma actividade politica em permanente coação. Os lugares anteriormente de encontros e partilhas, transformaram-se em espaços efémeros de rutura e conflito. “</p>
<p>A exposição Places of War é o culminar de dois anos de trabalho de investigação e de criação artística, assente na temática da guerra no Médio Oriente – em particular na Síria – que despoletou em 2011, na sequência da Primavera Árabe. Daniel Nave foi compilando imagens e relacionando-se com esses locais de guerra, alvo de atentados terroristas ou bombardeamentos, cenários de caos e devastação. Na pesquisa que realizou deparou-se com livro Da Guerra (On War), de Carl Von Clausewitz 3, em que este ressalta a inter-relação entre guerra e política, estabelecendo a possibilidade de distinção entre guerra judiciosa e não judiciosa. “A guerra não é um fenómeno independente, mas a continuação da política através de meios diferentes.” 4. Independentemente dos argumentos, meios e práticas 4 poderem ser judiciosos, para quem está no meio da batalha é efectiva a perda, a destruição e a inevitabilidade de uma marca difícil de ultrapassar.</p>
<p>No entanto, há sempre outras perspectivas. Sun Tzu, 5 autor de um dos mais emblemáticos tratados de guerra, A Arte da Guerra, eternizou historicamente o postulado “No meio do caos, também há oportunidade.” De outro modo, a escritora inglesa Rose Macaulay, no seu livro Pleasure of Ruins, um estudo clássico sobre a estética da destruição, escreveu numa interpretação poética “A escada sobe e sobe, sem se intimidar, até o cume sem telhado onde encontra o céu”, defendendo que “A ruína deve ser uma fantasia, velada pela imaginação sombria da mente. 6 ”Ao estimular a imaginação e transitar para a dimensão ficcional da arte, a ruína inscreve-se num novo real através do processo de criação artística que a prolonga em registo visual, transformando-a. É essa capacidade de reinterpretar o real pela poesis que Daniel Nave afirma, por via de uma abordagem artística que contraria a facilidade de uma visão simplista do nililismo e que, de forma paradoxal, desconstrói e delapida o que já está aniquilado, i.e. as ruínas da cidade, para chegar à essência estrutural e reconstruir um novo olhar sobre esse aparente nada, mas onde sempre subsiste uma “alma” que permite a revivência.</p>
<p>Na origem do projecto Places of War estão um conjunto de imagens selecionadas pelo artista que ilustram paisagens urbanas em ruínas, escombros de edifícios destroçados, espaços habitacionais moribundos, sem partes de estrutura. Mas estas imagens não foram apenas ponto de partida, uma vez que o artista decidiu incorporá-las no seu trabalho e, pela primeira vez, utilizar a fotografia como suporte de criação artística. Ao todo um conjunto de 10 fotografias dão corpo estrutural ao projecto, apresentadas em duas vitrines, numa sequência que remete para frames de um filme com as respectivas legendas ou para um story board. </p>
<p>Na fotografia intitulada Carta de uma cidade que não existe, podemos ler ,”Passei pela tua casa mas não estava lá ninguém, os teus pais não estavam lá para tomar um chá e não havia sinais dos teus irmãos. Lamento, mas o lugar estava em ruínas.” Um testemunho que sublinha a nostalgia e dramaticidade da ausência provocada pela guerra. Do conjunto de fotografias, apenas uma inclui a presença humana, mostrando homem idoso sentado na cama de um quarto depredado pela guerra. A violência da imagem é acentuada pelo depoimento que denuncia o limbo no espaço e no tempo de alguém que tudo perdeu e que sente a memória devassada: “Do meu quarto via o céu azul antes do terror invadir as nossas vidas. Agora só vejo cinzas mortíferas. Não encontrei os meus objectos pessoais, nem as fotografias dos meus familiares. A guerra levou-me tudo.” </p>
<p>Se numa primeira instância podemos considerar que há um aparente tratamento documental das fotografias de inventário, o facto de as legendas, compostas por testemunhos ou notas críticas do próprio artista, serem manuscritas, traduz uma inteligente forma de as libertar do seu registo documental. Quando olhamos mais atentamente percebemos que essas imagens foram intervencionadas, sendo visíveis diversas alterações cromáticas, com a introdução de tons quentes e intervenções gráficas que parecem querer escorar as ruínas existentes ou dar-lhes nova direção.<br />
A este conjunto de imagens, acresce mais uma fotografia (de maior dimensão) que se apresenta na entrada da exposição, como introdutória ao universo apocalítico que dá corpo à temática. Retrato de uma cidade fantasma, desfigurada e desumanizada pela guerra, convertida num labirinto de entulho com percursos por entre um palco de morte, onde não se vislumbra saída. Esta fotografia está na base da obra Colapso 2, um dos cinco trabalhos de pintura que incorporam e engrandecem o projecto Places of War. </p>
<p>Na linha de trabalhos anteriores, as pinturas são realizadas sobre plexiglas recortado e montado em caixas de luz, evocando o esqueleto de edificações, como se de um raio X vectorial se tratasse. Sobre fundos vazios Daniel Nave cria um novo perfil espacial dessas construções em colapso, criando uma trama que se assemelha a estruturas de ferro ou de betão corroído. Composições plásticas abstractas, de matriz figurativa, em que olhar clínico do artista apreende uma geometria do caos e resgata a arqueologia das formas. </p>
<p>A exposição Places of War apresenta-se assim como uma instalação composta por um conjunto de obras plásticas inéditas, que inclui ainda uma peça áudio original realizada especialmente para o projecto 7. O plano de instalação, concebido com enquadramento cinematográfico em ambiente de reduzida luminosidade, apresenta-se como uma proposta sinestésica, sustentada numa dialética entre as obras de arte e a ambiência sonora. A experiência sensorial e cognitiva visa materializar a interpretação poética que Daniel Nave aporta a este novo trabalho. Places of War distingue-se pela forma como sintetiza qualitativamente diversas vertentes do processo criativo, da actualização e revalorização de uma temática transversal na história de arte, à articulação entre a abordagem conceptual e o tratamento estético, não podendo ser ultrapassada a exímia qualidade técnica. É seguramente um marco e uma obra de referência no percurso de Daniel Nave que contabiliza já quatro décadas. </p>
<p>Adelaide Ginga</p>
<p>1. Em 2011, a Whitechapel publicou na sua coleção “Documents of Contemporary Art” um livro intitulado “Ruins, editado por Brian Dillon, que em 2014 foi o curador da exposição “Ruin Lust” na Tate Modern e que inclui, entre outras, obras de J.M.M. Turner, John Constable, John Piper, Graham Sutherland, Jane and Louise Wilson’s. Antologias que examinam, desde o início da era moderna até aos dias de hoje a temática das ruínas.<br />
2. Marc Augé, Não-Lugares. Introdução a uma Antropologia da Sobremodernidade. 90 Graus Editora, Lisboa:2005, p. 70.<br />
3. Carl von Clausewitz foi um militar prussiano e estratega de batalhas que, em 1832, escreveu este tratado sobre a guerra do ocidente, no qual faz uma análise e revisão sobre o conceito de guerra e toda a máquina existente no contexto do império de Napoleão Bonaparte;<br />
4. :<br />
5. Sun Tzu, general, estratega e filósofo chinês do Séc. VI a.C., autor do famoso tratado militar “A Arte da Guerra”. “In the midst of chaos, there is also opportunity”, The Art of War.<br />
6. Rose Macaulay, Pleasure of Ruins, Thames & Hudson, London, 1984, p. 454-5.<br />
7. A obra sonora foi encomendada ao músico e compositor Alexei Tolpygo, membro da Orquestra Metropolitana de Lisboa.</p>