Ghada Amer & Reza Farkhondeh | The Gardens Next Door
12.nov.2009 | 17.jan.2010
Press
Press Release
<p>João Pedro Vale “Moby Dick”</p>
<p>O projecto expositivo Moby Dick surge no seguimento de uma residência artística[1] que João Pedro Vale realizou no transcorrido ano de 2008 e meados de 2009 no International Studio and Curatorial Program (ISCP) em Nova Iorque, com o objectivo de investigar os vestígios das comunidades de emigrantes portuguesas que residiram nos Estados Unidos, nomeadamente na Costa Leste, constituídas, na sua maioria, por pescadores baleeiros que embarcavam nas ilhas dos Açores[2].</p>
<p>Pela importância sócio-económica que teve na vida das populações e pelo carácter épico-dramático de que se revestiu, a caça à baleia deixou marcas significativas na memória colectiva dessas comunidades, sendo ainda hoje, claramente perceptível que a relação com o mar, tão importante na construção do imaginário português, continua presente nesses grupos sociais, nomeadamente no estado de Massachusetts, na costa de New Bedford e em Cape Cod.</p>
<p>Moby Dick (1851) do escritor, poeta e ensaísta americano Herman Melville (1819-1891, NY,EUA), escrito durante uma estadia em New Bedford, não é indiferente a essa presença e são múltiplas as referências tanto a personagens da tripulação de origem portuguesa como à tradição náutica do país[3]. O romance de Melville, que relata em obscuras descrições numa panóplia de géneros literários as aventuras do narrador Ismael, suas reflexões pessoais e as vivências da tripulação durante três longos anos de aventura a bordo de um baleeiro do século XIX, aproxima-se assim da tradição trágico-marítima da literatura portuguesa, sobretudo na relação obsessiva que os personagens da história têm com o mar e com a figura de uma baleia, metáfora do fascínio pela aventura e pelo desconhecido.</p>
<p>Ao estudo e análise desse clássico da literatura americana na sua afinidade com as célebres tragédias marítimas da história da literatura portuguesa, Moby Dick de João Pedro Vale numa perspectiva apologética, perfilha ainda das interpretações homo-eróticas desde sempre atribuídas à obra de Melville e que os Queer Studies vieram enfatizar. O artista parte assim dos ensaios de Robert K Martin “Hero, Captain, and Stranger: Male Friendship, Social Critique, and Literary Form in the Sea Novels of Herman Melville” e “Sex Objects: Art AndThe Dialectics Of Desire” de Jennifer Doyle para a realização do filme Hero, Captain, Stranger, mote do projecto expositivo proposto sob a denominação Moby Dick.</p>
<p>A estrutura do livro de Melville, que, refira-se, em muito contribuiu para a sua pouco aceitação inicial – o enredo, as reflexões e as descrições exaustivas de tudo o que se relaciona com as baleias e caça à baleia, serviu de delineamento do guião e construção de um cenário constituído por um conjunto de objectos que fazem referência a diversos capítulos do livro, nomeadamente aos que Jennifer Doyle, docente de Literatura Americana, Gender Studies e Visual Studies na Universidade da Califórnia, designou de Moby-Dick’s Boring Parts.</p>
<p>Moby-Dick’s Boring Parts, não raras vezes desassociados da trajectória da narrativa principal, funcionam como veículos de introdução de conjunturas (homo)erótico-pornográficos na narrativa, encobrindo, desta forma, situações libidinosas entre as personagens que, no filme de João Pedro Vale – Hero, Captain, Stranger – são explicitamente representadas. Refira-se a título elucidativo um dos capítulos encenados no filme: “A Squeeze of the Hand (Um aperto de mãos)” em que a o protagonista e narrador da história, Ismael, descreve a paixão afrodisíaca que o conquista quando em grupo com os outros tripulantes processa a cetina[4] da baleia – «Espremer! Espremer! Espremer! Toda a manhã, tanto espremi este espermacete que no fim quase me fundi com ele; apertei este espermacete até que uma estranha espécie de loucura se apoderou de mim; dei comigo a apertar inadvertidamente as mãos dos meus colaboradores, tomando-os pelos macios glóbulos. Esta ocupação despertou em mim um sentimento tão forte, tão afectuosamente amigável, tão amante, que acabei por lhes apertar continuamente as mãos olhando-os nos olhos com ternura, como que para lhes dizer: “Oh, bem-amados semelhantes, porque continuar a alimentar rancores sociais e a sentir o mais leve mau humor ou inveja! Vamos, apertemos todos as mãos; fundamo-nos uns nos outros, fundamo-nos universalmente no verdadeiro leite e espermacete da bondade!”»</p>
<p>A narração histórica da caça à baleia deixa, assim, tanto no filme Hero, Captain, Stranger como nas peças expostas, de ser a acção e matéria principal. Esses objectos – bem como o próprio cenário repleto de referências, alegorias, associações e em si muitíssimo descritivo – realizados no contexto do filme, são, em última instância, reservatórios de desejo porquanto representam a articulação visual da tensão entre interesse sexual e tédio[5].</p>
<p>Os capítulos ditos Moby-Dick’s Boring Parts para além de remeterem o enredo principal para segundo plano descortinando situações e episódios lascivos, pelas suas fatigantes descrições, sugerem ainda o interessante paralelismo entre a relação dos marinheiros com o tédio e o aborrecimento do próprio leitor face a tais passagens.</p>
<p>O que João Pedro Vale nos sugere nesta exposição é uma relação entre tédio, estímulo sexual e relações de poder dentro duma sociedade de organização precária, constituída por um grupo de homens sujeitos a condições muito adversas de vida e de isolamento, unidos por acaso em torno da obsessão delirante do seu líder. Tornando assim o aborrecimento obsceno, levando-nos, por último a concluir que, uma vez mais a ironia surge como leme que prenuncia a direcção de uma renovada abordagem a conceitos relativos à antropologia cultural – como o imaginário, colectivo e a memória, aqui homogeneizados em duas culturas distintas – distinguíveis na maioria dos projectos do artista.</p>
<p>[1] Residência artística realizada no âmbito das bolsas atribuídas pela Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, em conjunto com a Fundação Calouste Gulbenkian na área das Artes Plásticas.</p>
<p>[2] A caça à baleia, iniciada nos Açores com a chegada dos navios baleeiros provenientes maioritariamente de New Bedford e que viria a conhecer o seu apogeu a partir da II Grande Guerra, foi uma actividade de suma importância económica, social e cultural para o arquipélago em particular para a ilha do Pico.</p>
<p>[3] “Não poucos destes caçadores de baleias são originários dos Açores, onde as naus de Nantucket que se dirigem a mares distantes atracam, frequentemente para aumentar a tripulação com os corajosos camponeses destas costas rochosas. Não se sabe bem porquê, mas a verdade é que os ilhéus são os melhores caçadores de baleias”. Herman Melville, Moby Dick, cap. XXVII</p>
<p>[4] Cetina, Cetila ou espermacete, substância extraída do cérebro da baleia utilizada para vários fins, entre outros, fabrico de velas, aditivo para óleo, cosméticos, glicerina, fibras, vitaminas, compostos farmacêuticos, etc.</p>
<p>[5] Convirá mencionar, em jeito exemplificativo, a peça “O Sermão”, que recorda o fastio dos marinheiros que para se entreter gravavam as memórias das suas vivências a bordo dos navios baleeiros nos dentes dos cetáceos capturados. Arte denominada de scrimshaw, presente nos mais importantes Museus Marítimos das cidades ligadas à caça à baleia.</p>