Herbert Brandl
22.set.2011 | 12.nov.2011
Press
Press Release
<p>HERBERT BRANDL</p>
<p>Schönwetterstress</p>
<p>A Galeria Filomena Soares apresenta a exposição de pintura do artista austríaco Herbert Brandl (Graz, 1959) Schönwetterstress, de 22 de Setembro a 12 de Novembro. A inauguração decorrerá no dia 22 de Setembro (5.ª feira) às 21h30 com a presença do artista. Na ocasião será editado um catálogo da exposição com um texto de Luísa Soares de Oliveira e com imagens das pinturas e monotipias presentes na exposição.</p>
<p>Sobre o panorama, a velocidade e a mudança das imagens</p>
<p>I</p>
<p>Desde os princípios do século XIX que os panoramas, um género particular de diversão pública, conheceram um sucesso notável nas cidades ocidentais. Consistiam eles em grandes telas que representavam na sua maioria cenas históricas que os visitantes podiam apreciar a partir de um estrado fixo. Batalhas, execuções públicas e reconstituições de todos os géneros dispunham-se numa tela de grande formato, que podia estar associada a mecanismos de movimento ou iluminação, pretendendo-se com isto suscitar no público uma experiência fenomenológica que recriava as sensações e emoções vividas em épocas para sempre perdidas. Houve em Paris um ‘panorama’ célebre que, embora tenha evidentemente já desaparecido, dá ainda o nome a um Passage des Panoramas construído em vidro e ferro, e albergando hoje lojas de luxo e galerias de design na moda. E é por demais conhecido o fascínio que Walter Benjamin1, esse grande pensador da modernidade, sentia pelo tipo muito particular de experiência estética de que o homem moderno usufruía neste género de espaços: uma experiência caracterizada pela inconstância, a transitoriedade, a mutação permanente de referentes visuais que a iluminação artificial e os seus reflexos nas vidraças que cobriam passagens e galerias proporcionavam.</p>
<p>É hoje aceite que panoramas e outras curiosidades afins possuem o seu lugar bem firmado na pré-história do cinema; do ponto de vista da experiência, os resultados que procuravam não se afastam conceptualmente daqueles que os filmes destinados a sucessos de bilheteira almejam, e isto apesar da ausência de montagem e da incipiente linguagem plástica que decerto a grande maioria utilizava. Um desses panoramas, cujo telão está hoje conservado no museu do Hermitage, pretendia mesmo proporcinar algo que se assemelharia a uma viagem no Trans-siberiano, com uma sala decorada como compartimentos de comboio, onde os espectadores se sentavam enquanto as paisagens desfilavam por janelas semelhantes às que se viam da máquina original. Este panorama, que fez sucesso na Exposição Universal de Paris de 1900, possuía a particularidade de ignorar a recriação histórica ficcionada e de lhe preferir a exposição da paisagem distante e, afinal de contas, exótica. A tundra siberiana ao alcance dos parisienses da Belle Époque actualizava e materializava as descrições só acessíveis pela mediação do jornalismo, da literatura, da pintura. Ou seja, só acessíveis até então a uma pequena minoria cultivada e endinheirada, e que aqui procurava, quase ao alcance da mão, a confirmação da realidade possível de uma paisagem longínqua, quase inacessível, nunca directamente experimentada.</p>
<p>II</p>
<p>O fenómeno dos panoramas, que terminou como era de esperar com a invenção do cinema no final do mesmo século, possui alguns parentescos com os efeitos da pintura de Herbert Brandl. O pintor também escolhe com frequência telas de grande formato, que preenche com paisagens, ou fragmentos de paisagens que convocam no espectador da sua obra um tipo de percepção que não é exclusivamente visual. Tal como sucedia com a recriação da viagem pela Sibéria que descrevemos acima, Brandl exclui a acção (a mesma que na época se materializava nos ‘faits-divers’ proporcionados pela história e pela actualidade jornalística) e concentra-se num tipo de paisagem reconhecível e imediatamente identificável: as montanhas, sobre as quais já disse em tempos que provinham de uma sensação sem nome, e que lhe evocavam a pintura tal e qual a tinha conhecido em criança2, mas também outros espaços que se podem situar num limite entre dois mundos: pântanos, desertos, fragmentos de floresta. Com frequência, auxilia-se da fotografia, que utiliza como instrumento de arquivo. Outras vezes, é o próprio espectador que identifica o que lhe é dado a ver, não em relação a uma qualquer tipologia da imagem geográfica, mas como referência nítida à própria história da pintura. A cor, a mancha, o sentido da pincelada e a sua relevância para a concepção de cada obra possuem uma genealogia que se se torna evidente à medida que se descobre a obra deste pintor.</p>
<p>Contudo, e bem ao contrário daquilo que sucedia com os panoramas do século XIX – e mesmo que o tipo de experiência para a qual nos Brandl nos convoca esteja na directa filiação da sensação e do choque procurados por essas atracções destinadas ao grande público -, esse espectador confronta-se com uma colecção de imagens que citam a história da paisagem desde os seus inícios, mas sobretudo durante a modernidade dos séculos XIX e XX – e isto, a partir do momento em que se deixa envolver hapticamente por esta pintura. Também ao contrário do que sucedia então, não é o exotismo ou as qualidades cenarísticas que influenciam a escolha de cada imagem pelo pintor, mas sim a sua capacidade de se referir a esse arquivo pessoal de que falava por ocasião da grande exposição no Museu de Serralves, a primeira onde apresentou a sua obra em Portugal: é porque é reconhecível e identificável com um arquivo interiorizado, e que engloba toda a história da pintura – mesmo quando ela se reduz já ao kitch das fotografias repetidas à exaustão em todos os suportes imagináveis e imediatamente acessíveis a cada um – que cada imagem se torna significante, mesmo que o pintor considere sempre em primeiro lugar a relevância que ela possui no contexto global da sua própria obra. É frequente que Brandl, como sucede neste conjunto, associe trabalhos feitos em outras ocasiões, para outros contextos sociais e espaciais, e as inclua no seio de uma nova série, acentuando assim o elo entre cada série e as anteriores. No seu atelier, essas pinturas mais antigas estão permanentemente à vista enquanto trabalha, funcionando como uma base ou suporte (‘foundation ground’3) para as imagens que surgem. Ou seja, toda a sua obra se constitui como um fluxo ininterrupto de imagens que, apesar das aparentes diferenças, se organiza num todo coerente que ultrapassa a questão da divisão temporal: exactamente como num arquivo, ou melhor, num museu, onde o fluxo da história se condensa num mesmo espaço, encerrando estilos, géneros e épocas históricas no período de tempo, sempre relativamente curto, que a sua visita eventualmente demore.</p>
<p>III</p>
<p>O museu: segundo Arthur Danto4, a pós-modernidade caracteriza-se por um olhar radicalmente diferente em relação à História daquele que os modernos tinham criado. Em vez da necessidade quase compulsiva de apagar subjectivamente o passado e de incensar o novo e o diferente, mesmo que seja para o transformar num voto de eternidade, o olhar contemporâneo coabita com essa mesma história, que o museu apresenta como bem de consumo e fonte de inspiração. A obra de Herbert Brandl insere-se neste novo olhar, e é por isso que encontramos nela simultaneamente a referência à pintura de paisagem representativa, assim como essa outra forma de encarar o espaço sensível, preenchendo-o a partir da marca evidente da autoria artística. Dito de outra forma, as duas vertentes da paisagem pictórica desenvolvidas pelas épocas clássica e moderna convivem na obra do artista sem conflito: por um lado, a apreensão do mundo da natureza através da pintura; por outro, a projecção nesse mesmo mundo da vida humana: os paisagistas holandeses ou ingleses, de um lado, Caspar David Friedrich, do outro; a reconstituição da refracção da luz na retina do espectador imaginada por Monet, de um lado, ou as aguarelas quase naïfs dos exploradores do século XIX, e os espaços sensíveis e tácteis de Pollock, do outro. Mais uma vez, é toda a história da paisagem, inclusive na pincelada óbvia e autoritária que por vezes utiliza, que Brandl nos oferece na sua obra.</p>
<p>Como é evidente, é legítimo inquirir sobre o destino dessas imagens originais, guardadas nas colecções dos museus e nas suas reservas. Esta é uma questão em aberto que está sempre implícita no trabalho de Brandl, e que se adivinha em filigrana nos interstícios do processo de registo e conservação que subjaz à sua obra. A permanência das imagens atesta unicamente a sua transformação entrópica através da repetição sem fim de um outro que já não é o mesmo, nos mais variados suportes, e apesar de todas as parecenças, e a uma velocidade cada vez maior. E é também a esta luz que se deve encarar a importância da gravura na sua obra, como método de reprodução da imagem artística consagrado pela história. Uma velocidade sem qualquer relação com aquela a que os velhos panoramas se moviam, mesmo se, afinal, aqueles também contribuíam para acrescentar o arquivo de imagens que todos trazemos connosco.</p>
<p>Sines, Agosto de 2011</p>
<p>Luísa Soares de Oliveira</p>
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<p>1 Nomeadamente em Das Passagen-Werk, recolha de textos redigidos entre 1927 e 1940, só publicados na década de 80 (Berlin: Suhrkamp Verlag, 1982).</p>
<p>2 In “Ulrich Loock in Conversation with Herbert Brandl” in Pintura: Herbert Brandl, Helmut Dorner, Adrian Schiess, cat. exposição (Porto: Fundação de Serralves, 2004), cit, in Ulrich Loock, “Closeness / Distance” in Herbert Brandl, cat. exposição (Hamburg: Deichtorhallen, 2009), pág. 37.</p>
<p>3 Em conversa connosco.</p>
<p>4 In After the End of Art. Contemporary Art and the Pale of History (Princeton: Princeton University Press, 1998).</p>