Fernand Lantier e outros
22.jan.2022 | 19.mar.2022
Press
Press Release
<p>João Penalva, Fernand Lantier e outros: Papéis, linhas e tecidos: imagens e legendas</p>
<p>Imagens e textos associam-se com frequência nos trabalhos de João Penalva através de cruzamentos e combinações tão lógicas quanto inesperadas. Muito diverso nos recursos que tem utilizado – pintura, desenho, fotografia, texto, som, vídeo, impressão, escultura e instalação – Penalva constrói e apresenta, obra a obra, exposição a exposição, situações em que a visualidade e a textualidade se contaminam e se revelam indissociáveis. Sendo um artista visual, é também um contador de histórias; contando histórias vai construindo sistemas visuais em que as imagens são elementos morfológicos estruturantes dos enredos e das informações que convocam e transmitem. Ver é ler e ler é ver nesta obra que nos chama a atenção para facto da leitura ser também uma forma especial de ver, de observar as imagens ao lado das quais o texto surge.<br />
Fernand Lantier e outros é o título desta exposição, mas poderia ser também o título de um livro de contos, e é-o na medida em que cada grupo de obras (fotografias, textos e legendas) constitui um conto visual em que as suas dimensões narrativas, informativas e iconográficas são combinadas e interrogadas. No trabalho de João Penalva, tudo quanto se vê ou lê, do título da obra ao caixilho que a emoldura, é um seu elemento constituinte, interpretável consoante o caminho que decidamos escolher dentro da ambiguidade e da polissemia que materiais, textos e suportes nos ofereçam. Nas obras apresentadas sobressai um material fotografado em quase todas elas: o tecido. Diversos tecidos de diferentes origens, proveniências e culturas, são fotografados, ampliados e impressos, a cor ou a preto e branco, em diferentes medidas e proporções, de tamanhos grandes a pequenos e vice-versa. Como toda a regra tem a sua excepção, encontramos dois grupos de trabalhos que se afastam desta apresentação geral de fotografias de tecidos: em Composição com três sacos de papel japoneses antigos, para o armazenamento e transporte de casulos de bicho-da-seda e outros produtos secos, e Molton preto, de teatro, de Russell and Chaple Ltd., Store Street, Londres, 2021, como o título o indica, são apresentados antigos sacos de papel japoneses e em duas Composição com tecidos do vestuário de trabalho de operários europeus do início do século XX, 2021, em vez de fotografias encontramos, emoldurados, retalhos de vários tecidos de algodão costurados uns aos outros como num trabalho de patchwork. A apresentação de fotografias de detalhes da cadeira Eva de Bruno Mathsson, (um ícone do design industrial do séc. XX), não chega a ser uma excepção porque é sobretudo a trama de cintas de cânhamo que se revela o assunto principal desses detalhes. Esta obra é aliás uma das chaves interpretativas de toda a exposição: a grade originária de tantos desenvolvimentos da modernidade artística manifesta aqui a sua evidência, suscitando a analogia entre o entretecer na fabricação dos tecidos e o cruzamento de sintagmas e paradigmas, a projecção das palavras na frase, numa construção textual. Não se pense, no entanto, que Penalva importa e homenageia literalmente essa referência que a história da arte moderna ou o estruturalismo linguístico lhe oferecem: raia a iconoclastia dessa grade austera e puritana da modernidade o facto do artista a apresentar relacionada com a volúpia das curvas que caracteriza a estrutura de madeira da cadeira de Mathsson, assim como a saliência nem sempre linear dos pregos que a ela prendem o tecido…</p>
<p>Por sua vez, na composição com sacos de papel japoneses poderão ser detectáveis paradigmas tradicionais que vão da composição dos ikebana, os célebres arranjos florais, à representação do yin e do yang – dois sacos opõem-se um ao outro na sua disposição… – mas como não reparar que um dos sacos, rasgado, está “restaurado” com uma fita adesiva que rima na perfeição com os rasgões e as costuras que encontramos noutras séries de fotografias de tecidos na exposição? E como não encontrar uma relação entre esses sacos de papel e a história dos têxteis, quando aprendemos, na história que deles nos é contada, que eles foram uma inovação tecnológica no transporte de casulos do bicho da seda?<br />
É igualmente impossível não reparar como a apresentação das duas peças com retalhos de tecidos confronta a representação fotográfica de todos os tecidos que surgem fotografados em outras peças da exposição, tensionando a realidade do tecido enquanto material com a hiperrealidade da sua representação fotográfica, na escala gigante mas real de algumas impressões, no pormenor minucioso e perfeccionista com que nos são apresentadas tramas e texturas em quase todas as outras fotografias apresentadas. A dupla moldura museifica ironicamente estas obras enquanto obra dentro da obra, percurso que o artista convida a percorrer quando noutras peças detectamos a impressão dentro da impressão – a impressão tipográfica em detalhes de sacos de serapilheira fotografados, por exemplo, nessa evidência do olhar do artista sobre os materiais que a vida lhe oferece, na arqueologia do banal o encontro com o extraordinário, como acontece nessas fotografias de tecidos em que ele combina, associa, enquadra e reenquadra, emoldura e dispõe no espaço da galeria, titulando-as e juntando-as a textos informativos e narrativos que suscitam outras viagens a partir de cada uma e de cada um deles.<br />
Parece por vezes que Penalva se diverte com uma história da arte do século XX na encruzilhada de caminhos interpretativos que oferece ao visitante: como não lembrar Rauschenberg nas fotografias de alguns dos fragmentos de serapilheira impressa fotografados, como não lembrar Cy Twombly nos desenhos das costuras que pespontam e alinhavam certos rasgões? E as sombras de Kertész, Brassaï Man Ray e tantos mais? E tanta pintura que espreita através dos padrões geométricos e dos retalhos coloridos de mantas kantha do Bangladeche? Ou dos detalhes de um telão pintado para uma produção da Carmen no Teatro Nacional de São Carlos? Ou ainda da revisitação da grade da modernidade em alguns tartans escoceses? E que dizer da reminiscência dos bodegones da pintura espanhola do séc. XVII nos jogos de luz e sombras configurados pelas Bobinas de tecelagem industrial para linhas ou fios de costura, provavelmente indianas, pintadas à mão, ca. 1925, 2021?</p>
<p>Quase todos os tecidos representados nesta exposição foram produzidos no contexto cronológico de finais do século XIX e da primeira metade do século XX, em plena construção de um mundo colonial cujos restos ainda habitamos. De certo modo, quase todas estas obras são restos de uma revolução industrial que encontrou na fabricação de tecidos um dos seus principais meios de desenvolvimento tecnológico e de acumulação de lucro em várias latitudes, protagonizada por homens comuns como o senhor Tayoshi Oishi ou como Fernand Lantier, polidor de metais de quem conheceremos agora as calças rotas. Tecidos para vestir, tecidos para dormir, tecidos onde nos sentamos, tecidos para transportar mercadorias. Fernand Lantier e outros reúne alguns desses restos dos buracos que a história não conta, mas que a obra de um artista como João Penalva nos convida a vislumbrar. Um artista que, entre tantas possibilidades que a arte lhe oferece, escolheu este caminho singular da combinação de textos e de imagens enquanto reinvenção da história e das suas histórias, no seu modo igualmente tão original de reinventar as realidades e as possibilidades. A peculiar relação entre textos e imagens na obra de Penalva relembra-me sempre que a história da arte não tinha que opor o retinianio ao não retiniano, como tantos tresleram em Duchamp. Como iludir o fulgor retiniano destas obras de Penalva, destas fotografias, das composições paratextuais que as acompanham? E como não pensar que tudo isto vai continuando o que Alphonse Allais iniciou quando, em Paris, em 1897, publicou um álbum em que um rectângulo vermelho, entre rectângulos de outras cores com outras legendas, era descrito como Colheita do Tomate, por Cardeais Apopléticos, à beira do Mar Vermelho?</p>
<p>Pavel Rodriguez<br />
Guadalajara, Janeiro de 2022 </p>
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