Carlos Motta | Nefandus
11.jun.2013 | 09.out.2013
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Press Release
<p>CANTO I</p>
<p>Há coisas cujo nome não pode ser mencionado</p>
<p>Acções que precedem a linguagem, os nomes, os sentidos</p>
<p>Desejos que resistem a ser registados</p>
<p>Momentos instintivos, irracionais, humanos</p>
<p>Há coisas que acontecem, que existem fora das construções culturais</p>
<p>Há coisas cujo nome não deve ser mencionado</p>
<p>Práticas enunciadas por uma linguagem que as rejeita</p>
<p>Desejos inscritos com um sentido abominável, conquistados por uma lógica ortodoxa</p>
<p>Momentos colonizados como o território que os compreende</p>
<p>Coisas feitas história e contadas contra certas tradições;</p>
<p>farsa disfarçada de verdade</p>
<p>Há situações que acontecem e são erradicadas com violência moral,</p>
<p>julgadas com fervorosa devoção religiosa</p>
<p>Essas coisas chamadas contra-natura são os pecados nefandos</p>
<p>CANTO II<br />
A paisagem não confessa o que presenciou;</p>
<p>as imagens estão fora do tempo e velam as acções que ali tiveram lugar.</p>
<p>Se observarmos atentamente a corrente do rio,</p>
<p>a folhagem das árvores ou o peso das rochas</p>
<p>poderíamos revelar a sua história?</p>
<p>Não.</p>
<p>Precisamos de instrumentos,</p>
<p>de documentação, de signos.</p>
<p>Foram encontrados ao longo do continente americano,</p>
<p>desde a península de Yucatan ao sul dos Andes,</p>
<p>artefactos orgulhosos e reveladores;</p>
<p>potes de barro e de cerâmica;</p>
<p>jóias forjadas a ouro e esculturas de pedra que representam actos homoeróticos,</p>
<p>actos de sodomia,</p>
<p>de sexo homossexual.</p>
<p>Hoje viajo ao longo de um rio com um nome de um Dom espanhol à procura de indícios dessa sexualidade celebrada,</p>
<p>indícios do momento que precedeu à sua demonização.</p>
<p>Este é um rio conquistado e um rio cúmplice;</p>
<p>as suas límpidas águas revelam leitos cicatrizados</p>
<p>onde etnias pré-hispânicas viram os seus corpos flutuando,</p>
<p>escravizados,</p>
<p>mortos,</p>
<p>onde as suas tradições foram afogadas.</p>
<p>CANTO III</p>
<p>A conquista é uma história de silêncios</p>
<p>Subordina o corpo</p>
<p>Reduz o desejo a cinzas</p>
<p>CANTO IV</p>
<p>A expressão do homoerótico foi também assinalada por cronistas,</p>
<p>europeus colonos e missionários evangelizadores saturados de fé e da moralidade de um Deus ocidental.</p>
<p>Nas suas crónicas referem-se aos pecados nefandos como uma anormalidade;</p>
<p>uma perversão xamânica e tribal oposta aos fundamentos de género e sexuais da “civilização”.</p>
<p>Com base na passagem bíblica de pecados conta a natureza, no Leviticus 18,</p>
<p>“Não te deitarás com um homem como se fosse uma mulher; tal coisa é abominação”,</p>
<p>o processo de domesticação evangélica era,</p>
<p>no seu ponto de vista, uma “salvação transcendente”.</p>
<p>Outras crónicas narram que os conquistadores deram aos nativos pecadores um pouco do seu próprio “gosto”, sodomizando-os para os castrar,</p>
<p>violando-os para lhes cobrar a sua falta de culpa cristã,</p>
<p>e matá-los para erradicar a propagação dos seus crimes hediondos.</p>
<p>Para os colonos a sodomia era mais abominável que a zoofilia</p>
<p>e que o prazer solitário da masturbação;</p>
<p>era a maior transgressão da moralidade,</p>
<p>que justificava serem erradicados</p>
<p>de qualquer forma,</p>
<p>não importava quão violentamente.</p>
<p>CANTO V</p>
<p>Apesar da sua intenção destrutiva, permanecemos aqui</p>
<p>Corpos, sangue, rituais, tradições, lendas, sacrifícios</p>
<p>O templo do cosmos</p>
<p>Terra sagrada</p>
<p>CANTO VI</p>
<p>Neste território a conquista instaurou a noção de história e as suas pretensões de objectividade.</p>
<p>Os seus relatos e crónicas baseiam-se em categorias importadas;</p>
<p>que são responsáveis pelo nosso conhecimento do corpo e da estigmatização do sexo.</p>
<p>O ânus deve a este momento a sua transformação em órgão de imoralidade,</p>
<p>num templo da vulnerabilidade masculina</p>
<p>e no território da sodomia.</p>
<p>CANTO VII</p>
<p>O seu vício era a nossa santidade</p>
<p>O seu pesadelo o nosso sonho</p>
<p>Os seus monstros os nossos ídolos</p>
<p>As suas perversões as nossas crenças</p>
<p>A sua história o nosso calvário</p>
<p>A nossa terra o seu tesouro</p>
<p>CANTO VIII</p>
<p>Procuro por detrás destas rochas molhadas,</p>
<p>através destas árvores silenciosas</p>
<p>e nestas águas correntes,</p>
<p>sinais do que era antes de ser nomeado,</p>
<p>indícios do pré-denominado.</p>
<p>Procuro marcas de um momento desconhecido e indocumentado.</p>
<p>Procuro uma imagem do desejo antes de ser criado,</p>
<p>manipulado,</p>
<p>alterado,</p>
<p>julgado.</p>
<p>Procuro outra história;</p>
<p>uma sem violência e opressão.</p>
<p>Procuro construir uma mentira na qual me possa ver reflectido.</p>
<p>Escapo do conhecimento,</p>
<p>procuro-me num estado inexistente.</p>
<p>CANTO IX</p>
<p>A minha voz mediada pela tua</p>
<p>Palavras impostas sobre as minhas acções</p>
<p>Tradições designadas como comportamentos</p>
<p>Os teus interesses reflectidos no meu corpo</p>
<p>Sou uma ficção inventada por ti</p>
<p>Olha-me nos olhos, o que vês?</p>
<p>O caudal do rio?</p>